sábado, 4 de fevereiro de 2017
Literatura brasileira abre pouco espaço para trabalhadores suburbanos, diz o escritor Luiz Ruffato
Unknown
11:08
Em entrevista o escritor mineiro, radicado em São Paulo, comenta a
adaptação de uma de suas histórias e fala do lançamento do livro 'Inferno
provisório'
Mineiro de Cataguases, radicado em São Paulo, o escritor
comenta a adaptação de uma das histórias de sua obra para o cinema, o
lançamento da antologia Inferno provisório e afirma que a literatura brasileira
abre pouco espaço para trabalhadores suburbanos de classe média baixa:
"Personagens assim são raríssimos."
A história Amigos, incluída no volume Inferno provisório,
foi utilizada como um dos pontos de partida para o roteiro de Redemoinho. Como
surgiu a inspiração para a história? Como reagiu à proposta de adaptação?
Na verdade, o Inferno provisório pode ser resumido nessa
história, a de dois amigos de infância que, quando se reencontram, tentam
compreender como teria sido suas vidas se tivessem trocados os papéis: o que
foi ganhar o mundo inveja o que ficou, enquanto o que ficou se arrepende de não
ter ido embora. Essa é a questão que perpassa todas as histórias não só do
Inferno provisório, mas de todos os meus livros. O desenraizamento provocado
pela imigração. A sensação de não pertencer ao lugar para onde mudamos e ao
mesmo tempo não pertencer mais ao lugar de onde partimos. A proposta de
adaptação é quase uma história à parte, afinal, entre o primeiro contato e a
estreia do filme contamos para mais de uma década. E, desde o começo, eu sabia
que ia ser um casamento feliz, porque percebia o carinho pelo projeto de José
Luiz Villamarim (diretor) e da Vania Cattani (produtora) e também o respeito de
George Moura, o roteirista.
Como você vê a transposição da sua literatura para o
cinema?
Redemoinho é a
segunda adaptação de texto meu para longa-metragem (em curta-metragem, o
Aleques Eiterer já fez dois, e está trabalhando para fazer um terceiro). No ano
passado, Estive em Lisboa e lembrei de você chegou às telas pelas mãos do
diretor português José Barahona, protagonizado pelo ator mineiro Paulo Azevedo.
Não tenho qualquer apego aos meus livros quando eles vão ser adaptados.
Adaptação é uma leitura – assim como são leituras as teses de doutoramento.
Portanto, quando o Redemoinho estava sendo criado, a base da história e os
personagens eram meus, mas o rosto deles, a forma de eles agirem e reagirem, a
relação que eles têm entre eles e com o mundo são fruto da visão e dos
sentimentos do Villamarim, do George Moura, e, por que não?, do Walter
Carvalho, que fez a direção de fotografia, dos próprios atores, que levaram
para o set suas memórias e lembranças. Literatura é literatura e cinema é
cinema. São linguagens diferentes. Portanto, a rigor, assim como na tradução
para outros idiomas, há apropriação do texto...
Cataguases das suas palavras é a Cataguases que está nas
imagens?
De certa forma sim, mas é também e principalmente a
Cataguases do Villamarim. A realidade não existe objetivamente, ela não está lá
fora, nós é que a criamos, nós recortamos o que nos interessa, tornando o todo
o que é apenas parte. Quais as principais alterações na edição “revista,
reescrita e reestruturada” de Inferno provisório? Houve várias alterações, de
todos os níveis, mas as principais foram a reorganização cronológica das
histórias (elas estão mais sucessivas, de alguma maneira), a limpeza das
páginas (elas estavam muito poluídas com mudanças tipológicas excessivas, e
muitas vezes desnecessárias) e uma maior clareza na relação parental das
personagens. Todas as histórias que constam dos cinco volumes originais estão
neste volume único, mas a sequência não é a mesma nem a divisão: agora há um
prólogo, quatro partes e um epílogo. Penso que esta é a forma definitiva com
que havia sonhado quando idealizei esse livro, que se arrasta comigo há bem uns
30 anos...
"Catálogo de histórias" é a definição que você
escolheu para Inferno provisório. Quase duas décadas e cinco volumes depois, o
projeto saiu como o planejado?
Pretende realizar
outro “catálogo de histórias” nas próximas décadas ou lançar livros avulsos? Eu
nunca me dou totalmente por satisfeito com meus trabalhos. Sempre penso que
poderia ter dado um passo além. Por isso, todos eles, sem exceção, quando
ganham novas edições são revisitados. Mas, claro, não posso ficar a vida
inteira reescrevendo meus livros, porque senão não escreveria outros. Estou
aproveitando o reposicionamento de todos os meus livros na Companhia das Letras
para tentar dar uma forma definitiva a eles. Creio que fiz isso com Eles eram
muitos cavalos, De mim já nem se lembra e agora com Inferno provisório. Flores
artificiais é um livro que considero "definitivo", mas não Estive em
Lisboa e lembrei de você, que ainda quero, em um momento propício, fazer
algumas pequenas cirurgias reparadoras. Não sei como será o futuro, mas para
mim cada livro é um livro – ele exige uma dedicação específica formal para um
resultado singular.
Mesmo não morando mais no estado, como Minas Gerais está
presente na sua vida e na sua obra?
O poeta mineiro Antonio Carlos de Brito, o Cacaso,
escreveu, em um poema intitulado Lar, doce lar: "Minha pátria é minha
infância / Por isso vivo no exílio". A vida, a vida que interessa, é
aquela que vivemos na infância. E minha infância é o paraíso vivido entre um
bairro operário em Cataguases e as férias passadas em uma colônia italiana,
Rodeiro. Eu transitava entre um universo de classe média baixa que prosperava
em uma cidade de forte tradição industrial (indústria têxtil) e um universo de
pequenos agricultores praticando uma economia de subsistência, em plena
decadência. Tive a sorte de experienciar esses dois polos, que, sem eu saber,
eram microcosmos do Brasil sob a ditadura militar. Quando deixei Minas Gerais
em definitivo, Minas Gerais já ocupava quase todo o meu corpo. E, só para citar
mais alguém em meu auxílio, é a pura verdade o verso do poeta inglês William
Wordsworth, que Machado de Assis usaria em Memórias póstumas de Brás Cubas,
"o menino é o pai do homem".
A história Zezé & Dinim é dividida pelos títulos,
traduzidos para o português, dos discos do Pink Floyd. A música é uma grande
influência para a sua literatura?
A música sim, mas não prioritariamente. A minha maior
influência, sem dúvida, é a literatura (tanto a ficção como a poesia, mas
também a não ficção: sou um leitor inveterado de história e de crítica
literária, por exemplo). Mas a música é importante sim, como também as artes
plásticas (em março será inaugurada uma grande exposição no Sesc Ipiranga, em
São Paulo, que tem como ponto de partida o diálogo do Eles eram muitos cavalos
com uma instalação do amazonense Roberto Evangelista). Toda a arte de qualidade
me interessa. E Pink Floyd está entre as maiores experiências estéticas da minha
vida.
Quem são os brasileiros que aparecem em Inferno
provisório? Por que a decisão de dar voz a eles?
Quando acabei de assistir o Redemoinho pela primeira vez,
eu disse ao Villamarim: "Este é um filme necessário". Por quê? Por
vários motivos. Por uma questão formal (o Villamarim filma de uma maneira muito
particular), mas também por uma questão de conteúdo. Raras vezes o espectador
vai ver nas telas o universo presente em Redemoinho: gente de classe média
baixa, trabalhadores suburbanos. Esses personagens que estão presente em todos
os meus livros, e não só no Inferno provisório, se são poucos no cinema, são
raríssimos na literatura. Costumo brincar que, assim como a classe média
brasileira tem desprezo pelo trabalho, assim também os escritores (que são
oriundos em sua quase totalidade) também têm desprezo pelo trabalho. Por isso,
a ausência do trabalho nas páginas dos livros. Como venho de família de classe
média baixa, de trabalhadores urbanos, eu mesmo operário têxtil e
torneiro-mecânico, achei que poderia dar uma contribuição, modesta, mas
sincera, para retratar essa gente que representa a maioria da população
brasileira.
Em um país que registra a queda do número de leitores e o
fechamento de livrarias, por que você escreve?
Eu não penso nisso quando estou escrevendo. Só penso
nisso quando não estou escrevendo... Como se dá o processo de transportar as
lembranças para a literatura? Eu penso que meu corpo é um receptáculo de
histórias. As coisas que vejo, ouço, cheiro, apalpo e provo provocam em mim
associações com coisas que vi, ouvi, cheirei, apalpei e provei no passado, o
que, de certa maneira, presentifica essas sensações. Quando escrevo, não me
transporto para o passado, mas transporto o passado para o presente.
Unknown / Perfil
Associação civil sem fins lucrativos formada por alunos do Instituto de Estudos da Linguagem, a Odisseia foi idealizada com o objetivo de preparar seus integrantes para o mercado de trabalho. Seus serviços oferecidos incluem coaching, revisão e análise crítica/parecer crítico; tópicos que estão, de certa forma, inseridos na criação dos cursos de Estudos Literários, Letras e Linguística. Além de oferecer esses serviços, a empresa busca estabelecer um vínculo maior entre os estudantes do Instituto de Estudos de Linguagem da UNICAMP (IEL) e o mercado editorial.
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